A 3ª edição do Colóquio Luso-Afro-Brasileiro de Questões Curriculares aconteceu no início de julho de 2017 na Cidade de Praia, capital de Cabo Verde, um país insular africano localizado no Oceano Atlântico.
Essa foi a primeira vez que o país sediou o evento, que já tomou lugar em Braga (Portugal) e Recife (Brasil), sendo que o tema da edição de 2017 foi sobre “Educação, Formação e Crioulidade” com a intenção de priorizar os problemas mais críticos no currículo escolar do país sede.
A questão do crioulismo na formação escolar cabo-verdiana se dá porque o arquipélago foi descoberto e tomado como colônia pelos portugueses no século XV, época que as ilhas se encontravam desabitadas e sem indícios de presença humana. Pela sua localização, a antiga colônia era ponto de parada de navegantes que iam para as Índias e Américas, mesma rota que os navios negreiros seguiam em direção ao Brasil, por exemplo.
Esse processo migratório favoreceu o crioulismo. Vale destacar que anteriormente o sentido da palavra remetia a descendentes de europeus que nasceram nas colônias respectivas de suas origens; depois o termo se abrangeu para negros nascidos em países americanos. Com o passar dos anos, o crioulismo passou a ser entendido como uma língua natural que surgiu da mistura das línguas originais dos escravos com a língua dos colonos, como aconteceu no caso do crioulo cabo-verdiano e de outros locais, como o crioulo sino-português de Macau.
Outra característica do termo é que a crioulidade se expande para fora da linguística e se manifesta em toda a cultura local, presente nas músicas, folclore, gastronomia e outros aspectos que formam o estilo de vida dos cabo-verdianos.
Porém, apesar do crioulo ser hoje a língua materna da maioria da população de Cabo Verde, por conta da história do país, a língua oficial é somente o português com graves falhas curriculares, isso porque a grade de aulas ainda não inclui o crioulo no leque de matérias ensinadas.
Entender esse problema e desbravar possíveis caminhos foi a proposta tanto do 3º Colóquio Currículo quanto de diversos trabalhos apresentados na edição, que estão disponíveis individualmente na plataforma Galoá Proceedings Indexados.
“Realidade curricular Caboverdiana e a crioulidade: o caso da educação linguística no contexto da iniciação escolar” é um dos trabalhos apresentados no Colóquio Currículo 2017. O trabalho é de autoria de Eleutério Moreira, que é doutorando de Ciências da Educação na Universidade de Minho (UMinho) e pesquisador do Centro de Investigação de Estudos da Criança (CIEC) em Portugal, de Isabel Carvalho Viana, especializada em Desenvolvimento Curricular, professora auxiliar do Instituto de Educação da UMinho e pesquisadora do Centro de Investigação de Estudos da Criança (CIEC), e de Nicolas Quint, diretor de pesquisa em Linguística Africana no Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS) da França.
Em entrevista tripla concedida via e-mail, os autores explicam no quadro Pesquisa em Destaque um pouco mais sobre o tema do trabalho. Confira a seguir:
Normalmente, associamos o termo “crioulo” como o indivíduo de origem europeia que nasceu nas Américas, mas esse termo passou por mudanças. Vocês poderiam explicar melhor o que é o crioulo?
Sim, o sentido inicial era esse. Mas há mais de cinco séculos surgiram as primeiras gerações de “crioulos” e passou a existir culturas crioulas, incluindo línguas crioulas que cada vez gozam de maior reconhecimento tanto por parte dos estudiosos como das populações que as praticam. Assim, crioulo hoje é um conceito abrangente que ultrapassa o seu sentido inicial e atravessa vários campos, como a antropologia, as artes, culinária, folclore, etc. Em Cabo Verde, hoje em dia, a língua que se fala na maioria das conversas do dia-a-dia no país é o crioulo.
E como se associou a crioulidade em Cabo Verde?
Cabo Verde é uma nação essencialmente crioula. Estando despovoado no séc. XV, a sua população actual resulta de miscigenação entre europeus e africanos. Disto resultou também uma cultura que se compõe de traços europeus, africanos e da criação local. Há uma consciência crioula que sustenta a identidade dos cabo-verdianos (manifestação da crioulidade), em geral, e dos discursos políticos, em particular. Por exemplo, no quotidiano, a interacção entre os cabo-verdianos torna visível essa associação. Isso é visível nos momentos críticos da nação como no período das eleições, por exemplo. E entre os não cabo-verdianos assume diferenças importantes. Nas comunidades estrangeiras residentes no país é visível a (maior) facilidade com que os oeste-africanos e os chineses, por exemplo, se apropriam do berdiánu (crioulo cabo-verdiano) e se adaptam ao modo de ser e estar da população.
O foco da pesquisa foi sobre a crioulidade linguística em Cabo Verde. Para entender melhor o problema, em Cabo Verde há a língua oficial portuguesa e o crioulo. Como seria essa língua crioula? Como ela se desenvolveu?
Sim, existe o português, língua oficial e o crioulo de Cabo Verde (ou língua cabo-verdiana que, em crioulo pode ser referida como berdiánu), língua em processo de afirmação na literatura, artes cênicas, comunicação social e ambiente académico. O Crioulo de Cabo Verde pertence ao ramo dos crioulos da alta Guiné ou CPAO – crioulos com base lexical portuguesa da África Ocidental (há outros ramos dentro da família de línguas crioulas) e que vem sendo estudada, desde finais do século XIX. Hoje o berdiánu é uma língua autónoma com as sua próprias variações dialectais erroneamente chamadas de “outros crioulos de Cabo Verde”. Em relação à história e variação interna da Língua de Cabo Verde (LCV), a sua dialetização teria ocorrido posteriormente. No entanto, uma explicação sobre crioulização e dialetização é fundamental, pois tem havido muitas confusões que geram preconceitos e perturbam o pensamento em relação ao berdiánu e outros crioulos. A figura a seguir ilustra a diferença entre os processos de crioulização e dialetização:
A figura mostra a acção dos dois falantes tendo como referência a Língua Portuguesa. O crioulizador pára antes. O dialectizador ultrapassa a língua-alvo mas, na verdade, partiu dela mesma porque no seu ponto de partida estava alguma variedade da mesma língua. Já no ponto de partida do crioulizador estaria outra língua muito diferente da língua dialetizada, acabando por produzir um crioulo. Esta diferença constitui uma das bases identitárias dos crioulos em geral e berdiánu em particular. Esta realidade é, ao mesmo tempo, uma força e uma ameaça do crioulo. O sobrevoo na diferenciação entre o berdiánu e o português bem como no processo de formação de um crioulo demonstra que, efetivamente, a incorporação do novo não é indiferente aos esquemas pré-existentes na mente do sujeito. Por conseguinte, nada se dá por acaso. Esta criação refere uma nova língua, pois, na realidade, o que se demonstrou é que houve uma espécie de incorporação de um léxico (com mudanças e modificações tanto fônicas como semânticas) numa estrutura morfossintática de outra língua. Aquela(s) que os crioulizadores já possuíam. Nasceu uma nova língua, com características diferentes, que conseguiu harmonizar a interioridade e a exterioridade dos indivíduos.
No trabalho, vocês apontam que existem um duelo e um dueto a ser debatido entre essas duas línguas (português e crioulo) em Cabo Verde. Como se manifestam essas situações linguísticas exatamente?
O dueto e o duelo referidos no trabalho remetem para duas situações: Uma é a situação desejável (dueto ou bilinguismo equilibrado) mas que nem sempre acontece, a outra é a situação real que podia ser melhorada. Sendo duas línguas diferentes, como já referimos, o crioulo de Cabo Verde trouxe mais de 90% do seu léxico do próprio português (com alguma modificação que pode gerar a situação de falsos amigos) mas tem uma gramática própria (fonética, fonologia, morfologia e sintaxe autónomas) que às vezes se aproxima bastante das línguas oeste africanas (predominantemente wolof e mandinga). Com base neste entendimento, é possível uma aposta num sistema de formação de cérebros bilíngues (aproveitando os sistemas gramaticais diferenciados) e ter indivíduos com sistemas de pensamento mais abertos e, portanto, mais dotados. Por outro lado, as línguas, sendo uma materna e outra internacional, podem se complementar em funções diferenciadas (teatro, música, afeto, espaços familiares para o berdiánu, assuntos de Estado, Ciência, tecnologia, relações internacionais para o português). Entretanto, existe a possibilidade de duelo (ou enfrentamento entre as línguas), pois, a tendência para o monolinguismo (colocar o crioulo em todos os espaços ou o português em todos os espaços) é uma realidade que sempre ameaça. O duelo e o dueto também podem ser visíveis na interface entre o currículos propostos, oficial e o vivido. Isso acontece em virtude de não haver espaços curriculares oficiais para o crioulo e nem orientações metodológicas sobre a gestão da crioulidade no espaço pedagógico. Cada professor acaba gerindo tudo à medida da sua vontade e entendimento. O currículo nacional não pode ser gerido com intervenções avulsas, à mercê da boa vontade dos professores/educadores! Requer um compromisso colectivo partilhado pelos diferentes intervenientes, consubstanciado, grosso modo, nos níveis de tomada de decisão curricular, que se desdobram desde o nível político até ao nível de intervenção directa, o contexto micro de actuação com as crianças e as suas especificidades. Com base neste entendimento, podemos referir que percepcionamos um cenário que revela o espaço formal de formação desarmonizado com o espaço não formal e informal de formação dos cidadãos.
De que forma o currículo de Cabo Verde pode se desenvolver para a construção desse bilinguismo social?
O desafio para o currículo é criar as condições para que a relação de dueto seja desenvolvida. Começa pelo desafio da didatização. O berdiánu está cada vez mais presente em espaços formais, há cada vez mais obras escritas no berdiánu (sobretudo poesia), começa a surgir sites de internet totalmente em berdiánu. No entanto, o berdiánu conta com a tal variação interna considerável de ilha para ilha (variação diatópica) e também em função dos meios sociais (áreas rurais verses áreas urbanas, grau de educação das pessoas, etc…), além do sistema de escrita ainda não ser muito bem assimilado. Do ponto de vista curricular, várias medidas são traçadas: a criação de espaços para a língua na grade curricular desde os primeiros anos até ao 12º; a criação de materiais didáticos para cada nível de ensino; a adequação das produções culturais ao processo ensino aprendizagem; a adaptação dos estudos científicos já realizados em trabalhos de utilidade escolar…. Apesar de já haver um volume grande de trabalhos em e sobre o berdiánu, muito mais é preciso ser feito porque muitas vezes existe uma abordagem sumária na comunicação social e outros espaços.
Você poderia exemplificar qual é o papel do ensino pré-escolar, discutido no trabalho, para que se possa construir esse bilinguismo?
No nível pré-escolar está a idade crítica para a aprendizagem das línguas. É o período ótimo para a criança ser introduzida na aprendizagem formal das duas línguas (crioula e portuguesa), identificando as semelhanças e diferenças, ouvindo falantes do português mas também falantes nativos das diferentes variantes do berdiánu. Desta forma, elas conseguem muito rapidamente atingir o nível metalinguístico (ou seja a capacidade de reflectir sobre a sua própria língua e analisá-la), processo tão almejado pelos sistemas educativos que pautam pela qualidade das aprendizagens pois, a metalinguagem é uma das formas de metacognição (pensamento abstracto, elaboração de hipóteses explicativas para os diferentes fenómenos), o processo cognitivo mais elevado dentro das capacidades cognitivas. Hoje, é comum ouvirmos que há estudos que demonstram que o bilinguismo, no pré-escolar, aumenta o potencial cognitivo e emocional das crianças, que as torna sensíveis à diversidade cultural, etc. Contudo, para que se possa construir esse bilinguismo é essencial que o Projecto Educativo seja desenvolvido de forma integrada, no caso, o crioulo e o português; é importante acautelar a proficiência do crioulo e do português dos educadores; considerar o ritmo de aprendizagem e a diversidade cultural das crianças presentes; e que o crioulo e o português sejam tratados com naturalidade. Este cenário requer uma atenção de cuidado continuada com a formação de profissionais de educação e um diálogo de proximidade com as famílias e a comunidade, com o ambiente natural de pertença das crianças, o contexto real onde a escola se insere.
Quais foram os principais problemas curriculares que vocês identificaram no currículo cabo-verdiano?
Vários problemas curriculares podem ser apontados. Contudo, o nosso foco é a adequação da oferta curricular à situação linguística dos alunos. Isso ainda não acontece. Constitui, portanto, um dos maiores problemas, pois, essa adaptação é muito informal, depende da criatividade de cada professor e por isso passível de gerar vários outros problemas. Os problemas curriculares focam questões subjacentes ao desenvolvimento curricular, em particular, tocam questões relativas às políticas curriculares, à gestão do currículo, à organização do contexto escolar e à capacitação de professores. Neste processo, é importante compreender se as políticas curriculares realmente valorizam a diversidade cultural nas suas propostas; clarificar o conceito de bilinguismo, o que é ser bilíngue; clarificar o para quê e o por quê do bilinguismo; clarificar as condições necessárias para que o bilinguismo possa ser trabalhado no contexto escolar; clarificar a estratégia de implementação do bilinguismo
Quais mudanças são sugeridas como propostas positivas para um melhor desenvolvimento individual e escolar no ensino pré-escolar?
A língua materna é a base para a formação do pensamento e um dos principais instrumentos de formação moral e cívica. Ao mesmo tempo, o português é a língua internacional mais tradicional da nação cabo-verdiana, presente na história do país desde o começo, o que a constitui num patrimônio de utilidade científica e relacional a não perder. Assim, a inclusão do português na fase precoce que seria o pré-escolar, ao lado do berdiánu seria uma medida de grande relevância. É importante um trabalho mais articulado com o ambiente natural da criança, um trabalho em maior proximidade com as famílias, a comunidade e especialistas; criar redes locais/regionais de trabalho colaborativo; considerar o ritmo individual da criança, há uma grande variabilidade individual na aprendizagem da linguagem; é importante considerar a qualidade do ambiente de aprendizagem.
Para saber mais sobre a pesquisa e o tema, acesse o trabalho de Eleutério Moreira, Isabel Carvalho Viana e Nicolas Quint nos anais do evento.
Você também pode encontrar outros trabalhos apresentados no 3º Colóquio Currículo na plataforma Galoá Proceedings Indexados aqui. Caso queira entender mais sobre a importância da publicação online de seus anais e como os indexar na nossa plataforma, envie seu contato no formulário no final deste post para nossa equipe especializada em comunicação científica entrar em contato. 🙂