Tecnologias assistivas é um termo usado para abranger uma vasta gama de diferentes dispositivos e serviços designados para amenizar alguma barreira causada por deficiências nas pessoas. Devido a sua funcionalidade, essas inovações costumam ser desenvolvidas de modo interdisciplinar, podendo variar desde dispositivos mais simples até aparelhos eletrônicos altamente sofisticados.
Essa foi a experiência de Letícia Segatto, aluna de engenharia elétrica pela Universidade de Uberaba (Uniube) que desenvolveu um protótipo eletrônico de jogo da memória para auxiliar no desempenho cognitivo e motor de deficientes intelectuais da Associação de Apoio aos Deficientes no bairro Liberdade (AADL) em Uberlândia, Minas Gerais.
O projeto foi desenvolvido pela graduanda com apoio das pedagogas da associação e orientação da engenheira biomédica e docente da Uniube, Mariana Cardoso Melo. Os esforços resultaram além do protótipo, que continua em aperfeiçoamento, no reconhecimento ao ter o projeto premiado como um dos 3 melhores trabalhos apresentados na IV Mostra de Tecnologias em Saúde do IX Simpósio de Engenharia Biomédica (SEB), realizado em 2016 pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
O SEB teve seus trabalhos publicados com DOI individualizado na plataforma Galoá { Proceedings, onde continua tendo visualizações e pode ser encontrado em qualquer lugar do mundo com o código de identificação (saiba o que é DOI aqui), como o trabalho de Letícia Segatto e Mariana Cardoso Melo que você encontra nos anais online do evento.
Para entender melhor a experiência e como funciona o protótipo desenvolvido, conversamos com Letícia Segatto. Ela nos adiantou que em análises posteriores da apresentação no SEB foi constatado que, nos três níveis de dificuldade do jogo, a porcentagem de erro diminuiu em relação à primeira sessão de atividade com os voluntários, conforme ilustra o gráfico a seguir:
Confira agora o bate papo que tivemos com Letícia Segatto:
Letícia, essa foi a primeira vez que você participou do SEB? Como foi sua experiência?
Sim, foi a primeira vez que eu participei do SEB, na verdade, o SEB foi o primeiro congresso que eu participei ao longo da faculdade. Eu nunca tinha participado de eventos científicos, então, a minha coordenadora resolveu submeter o trabalho. Foi tudo muito surpreendente para mim. Foi a primeira vez que eu escrevi um trabalho científico para submeter a um evento, então eu fiquei muito surpresa com a premiação. Agora eu continuo com a pesquisa e escrevendo sobre ele.
E o seu projeto faz parte de um estágio ou programa dentro da Uniube? Como surgiu a ideia em desenvolvê-lo?
Não, ele surgiu de uma disciplina proposta na faculdade no ano passado, 2016. Eu não estava estagiando na época e a proposta da disciplina foi desenvolver um projeto para alguma instituição que beneficia deficientes físicos. Eu comecei a analisar e perguntei se haveria a possibilidade de abrir uma outra oportunidade para outro tipo de deficiência porque essa associação, onde desenvolvi o trabalho, é carente e não tem jogos ou atividades diversificadas de entretenimento. Eu queria desenvolver algo que proporcionasse isso. Então, eu pensei em aplicar a tecnologia em um jogo da memória. Foi uma disciplina, mas eu continuo com o projeto e ele será parte do meu Trabalho de Conclusão de Curso.
Por que é importante o investimento em tecnologias assistivas e qual é o foco dessas técnicas?
As tecnologias assistivas são dispositivos que vão desde softwares até tecnologias que são sempre melhoradas. É uma vasta gama de produtos e serviços para proporcionar independência para quem tem alguma limitação, então, ela tem um potencial de ajudar as pessoas, mas não em curar ou corrigir alguma deficiência. A disciplina em si não é focada em tecnologia assistiva, chama-se “Projetos Integrados” em teríamos que desenvolver um projeto. Como a universidade já tinha parceria com uma outra instituição, existia a opção de desenvolver algo para deficientes físicos. Mas eu sugeri fazer um projeto para deficientes intelectuais porque conhecia essa associação.
Já que estamos falando dos deficientes, o seu jogo se focou em qual?
Eu fiz os recortes. Então, o jogo que eu desenvolvi é para deficientes que têm o grau leve e grau moderado. Na associação, há o diagnóstico de deficiência intelectual leve, moderada e avançada. Eu ainda não consegui verificar a adaptação dos outros deficientes para o jogo no grau avançado.
E como foi a captação e validação dos resultados?
Antes de iniciar o projeto, eu fui até a instituição, conversei com a diretora e fiz um teste inicial com eles para verificar a adaptação para o projeto. Expliquei tudo para os participantes que foram voluntários e com idades próximas. Eram todos adultos acima de 30 anos. Então, eu fiz o teste inicial para verificar a adaptação do jogo antes de começar com o desenvolvimento de fato. Foi bem satisfatório, alguns nunca tiveram contato com eletrônicos. Inclusive, alguns ficaram receosos, mas eu tive uma aceitação muito satisfatória.
E quais eram as principais dificuldades dos voluntários?
Na instituição, eles têm dificuldade com leitura, alguns não conseguem fazer discernimento da letra do alfabeto. Alguns não conhecem cores, não sei se por conta do daltonismo ou porque eles realmente não conseguem se lembrar, não me aprofundei ainda nisso. Inclusive estou fazendo adaptação do meu projeto para deficientes intelectuais daltônicos. Mas o público que eu fiz o teste até agora não conhece o alfabeto e tem dificuldade de memorização. Eles têm memória de curto prazo, então, se eu praticar a atividade com eles constantemente, eles começam a lembrar, mas se for algo espaçado, o desempenho é inferior. Eles têm esse tipo de dificuldade, alguns não conseguem andar na rua sozinhos por causa dos problemas de memorização, de reconhecimento, o que também interfere no aprendizado deles. Motivo pelo qual eu e a pedagoga da associação incluímos atividades com cores, objetos e o alfabeto.
Então todo o desenvolvimento do jogo passou pela assessoria da pedagoga da associação?
Sim, eu conversei antes com a pedagoga e diretora da associação, que além da formação, trabalha com esse público há muitos anos. Inclusive, antes de eu definir quais as atividades que aplicaria, defini com ela para também não ser algo muito monótono. Então, a diretora disse: “Letícia, vamos propor um momento de descontração. Vamos trabalhar com eles exercícios que vão exigir equilíbrio ou algum movimento.”, foi quando entraram as atividades físicas no projeto.
Você falou sobre a reação deles, que muitos deles não tinham nem contato ainda com o jogo e com a tecnologia, então é um perfil um pouco mais carente que a instituição atende?
Exato, a associação atende gratuitamente um perfil mais carente. A minha intenção, quando terminar o projeto, é deixar o jogo lá e apresentar para as outras instituições. Eles não têm computadores ou qualquer outro brinquedo que tenha alguma tecnologia. Mesmo o jogo da memória em carta, que é o tradicional, só alguns deles conheciam. Por isso que quando eles viram o protótipo ficaram receosos. Também foi meu primeiro contato direto com esse público, então eu também fiquei preocupada com a aceitação deles.
E como foi o processo de desenvolvimento do protótipo eletrônico de jogo de memória?
Eu tinha que pensar em algo para desenvolver na disciplina e eu queria usar a engenharia para ajudar outras pessoas. Porque a engenharia tem esse potencial de trazer recursos para levar acessibilidade a outras pessoas. Eu também tinha que aplicar no projeto algo elétrico, porque é o que eu estudo, aí pensei em desenvolver um jogo para atender essa associação. Pesquisei bastante sobre quais seriam os mais adequados para deficientes intelectuais e com auxílio das pedagogas e de minha orientadora, pensamos no protótipo que usasse poucos recursos.
E como funciona o jogo? Quando entram as atividades físicas dentro das atividades de memória?
A sugestão de introduzir as atividades motoras veio da diretora da associação para o jogo não ficar monótono e eles só apertarem as botoeiras. E existia outro problema: eles poderiam se desmotivar quando errassem. Inicialmente, eu tinha colocado a mensagem “você errou”, mas a minha orientadora sugeriu que alterasse para não interferir no desempenho e emoções, permitindo que o jogo realmente fosse uma brincadeira. Então, quando eles errassem teriam que fazer uma atividade motora menos avançada para se divertirem mais, como um abraço, bater palmas, imitar um animal, equilibrar-se por 10 a 30 segundos e outras atividades desse tipo. Eu falo: “Você errou, mas não tem problema. Vamos fazer isso que talvez você acerte”.
E quais outras reações e melhorias você percebeu dos voluntários?
Eu sempre converso com eles e pergunto o que acharam. Achei engraçado que em algumas sessões eles falam “Andei treinando na minha casa as cores.”. Eles tentam melhorar do jeitinho deles, adquirindo suas técnicas de memorização. Comentei no simpósio que às vezes quando um errava os outros ficavam tristes ou quando um acertava eles comemoravam juntos também. Eles trabalham em equipe para se ajudarem, mas sempre estou monitorando para a ajuda não atrapalhar o colega. Então, comecei a usar a interação deles: “Se fulano errar, eu quero que vocês me falem qual foi a sequência, então fiquem atentos!”. A aceitação do jogo foi satisfatória, percentualmente, 93% se adaptaram bem. Os que não aceitaram, relataram ter vergonha e medo de errar na frente dos colegas. Mas é um público totalmente receptivo, foi uma experiência surpreendente. Eles me agradecem o tempo todo por ter levado uma atividade diferente e perguntam quando vou voltar. Eles ficaram empolgados com o jogo e isso me deixou bastante feliz.
Bem legal o feedback. Para finalizar nossa conversa, você mencionou que o projeto está crescendo. Quais os próximos planos que você pode nos adiantar?
Na época da apresentação do SEB, eu analisei apenas a memorização de figuras e cores, agora estou trabalhando com sequência de objetos e cores e parece que dificultou mais, o índice de erro maior porque eles precisam de atenção redobrada. Inseri também o alfabeto porque não são todos que são alfabetizados, então em alguns momentos aparecia a sequência de letras. Se eles errarem, peço para escreverem, o que ajuda na memorização também. Ainda quero adaptar o jogo para ser disputado, de forma saudável, em duplas ou trios e ficar mais divertido e com mais interações. Quero expandir mesmo. Já consegui uma parceria para desenvolver um aplicativo gratuito. Minha intenção é conseguir adaptar o jogo para outras pessoas, se for possível, desenvolver um site com níveis diferentes de dificuldade para atender mais escolas e instituições. Também penso em inserir tempo cronometrado em cada atividade do jogo, porque quanto mais eles demoram para responder, percebo que eles perdem mais rápido o foco. No aplicativo também vai ter um gráfico para cada usuário medir o desempenho individual.