Este post é o primeiro da série Pesquisa em destaque, em que trazemos autores de trabalhos publicados com a plataforma de Proceedings e Anais de Eventos do Galoá para falarem sobre sua pesquisa, desafios e conclusões.
Conversamos com Fábio Amorim, autor da pesquisa Uma diáspora na antiguidade africana: Núbios em trânsito no Novo Império egípcio (1580-1080 a. C), apresentada no II Congresso das/os Pesquisadoras/es Negras/os da Região Sul (II COPENE Sul). Nesse trabalho, Fábio descreve a diáspora do povo núbio (originário da região hoje compreendida pelo Sudão e sul do Egito) após a conquista de parte de suas terras pelo Império Egípcio.
Galoá – Para começar, pode nos contar um pouco a respeito de você? Você atualmente é pós-graduando na UFRGS, certo? Qual a sua linha principal de pesquisa, e seus principais interesses?
Fábio Amorim Vieira – Sou mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Possuo graduação na mesma área pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, onde atuo como pesquisador associado no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros – NEAB – desta instituição. Na UFRGS sou orientado pelo professor Dr. José Rivair Macedo, notório pesquisador de História do continente africano. Atuo na linha de Cultura e Representações, com foco nos elementos culturais presentes entre o império egípcio e as regiões núbias na antiguidade, com quem dividiam o rio Nilo e o nordeste da África.
Esse período da história, o Novo Império Egípcio, infelizmente não é muito conhecido do público geral. Então, para contextualizar, comente por favor para a gente o que foi esse período e qual é esse contexto anterior de dominação estrangeira que você cita?
Curiosamente é neste período imperial que floresceram os faraós e rainhas mais famosos do público geral. Tutankhamon, Nefertiti, Ramsés, todos estes estão contextualizados no período imperial egípcio. Tal período caracteriza-se, sobretudo, pela expansão territorial e política egípcia a territórios vizinhos. Através de políticas de dominação estrangeira, aliada à efetiva militarização dos soldados do exército, o Egito avança rumo a leste e sul. É válido lembrar que este pensamento imperial só ocorre após os cerca de 200 anos de dominação asiática do Egito, quando os hicsos tomam parte do território e impõem um governo estrangeiro. Somente em meados de 1500 a. C os faraós de Tebas retornam ao trono de todo o Egito, expandindo as fronteiras e estabelecendo relações cada vez mais próximas e voltadas aos estrangeiros.
Quem são os núbios? Qual o seu local de origem e história?
Os núbios basicamente eram os povos a habitarem o sul da primeira catarata do Nilo. Dessa maneira, a Núbia sempre dividiu com o Egito o território do nordeste africano e o próprio rio, tão importante para estas sociedades. Desde os primeiros faraós temos registros escritos e imagéticos do contato entre o reino egípcio e localidades núbias próximas à fronteira. Com o avanço egípcio este contato vai se tornando mais frequente, até o período imperial egípcio, quando as forças militares faraônicas adentram cada vez mais o território núbio, chegando até a 5ª catarata em Kush. A Núbia antiga nunca foi unificada, tendo suas formações políticas pautadas em reinos e chefados heterogêneos.
Nesse período, a Núbia era uma região independente? Qual a relação dela com o Novo Império Egípcio?
No período imperial o avanço egípcio dá-se de forma massiva nas regiões núbias. Nas áreas do norte o controle faraônico é mais efetivo, com políticas de assentamento militar e controle da população, além da edificação de templos a deuses egípcios e estímulo a uma “egipcianização” das comunidades locais. Na região sul da Núbia, chamada na época de Kush, o contato foi mais restrito e a região possuia maior independência do controle egípcio que os povos do norte. Mesmo assim, políticas de tributação destes territórios e campanhas militares são frequentes na documentação escrita.
Em que parâmetros se deu a relação entre os egípcios os núbios? Você fala em uma diáspora Núbia dentro do território egípcio, em que posição estão essas pessoas e quais as relações de poder entre elas e os egípcios no período estudado?
É pertinente pensar que a relação entre egípcios e núbios aliava o medo que aqueles tinham de estrangeiros com os anseios econômicos do estado faraônico. A Núbia sempre foi vista pelo Egito como grande exportador de matéria-prima como ouro, peles de animais, gado e mão de obra cativa. Neste período imperial estes elementos entram no território egípcio expressivamente, e a presença núbia, seja na condição cativa e servil ou por meio de viagens diplomáticas, é reflexo destas políticas de dominação. No entanto, devemos atentar para as diversas possibilidades de vivências tecidas entre os núbios e as comunidades locais egípcias para além de uma visão estática de passividade absoluta. Ao contrário dos sistemas coloniais modernos, no Egito imperial a assimilação cultural aos moldes egípcios era justamente estimulada pelo estado, a ampliar o modo de viver egípcio para os estrangeiros. Há um ensinamento de um escriba do período que escreve à rainha Ahmose Nefertari: “Ensina-se o núbio a falar egípcio, o sírio e outros estrangeiros também”. Nesta seara, além de cativos, príncipes núbios também migravam forçosamente para o Egito, afim de serem educados na corte e voltarem para a Núbia para governarem de acordo com o faraó.
Os núbios até hoje são um povo com identidade própria. Existe uma continuidade do povo núbio dessa época com o núbios de hoje?
A Núbia hoje se divide entre os territórios nacionais do sul do Egito, Sudão do Norte e Sudão do Sul. Mesmo assim, há certa valorização de parte da sociedade com o passado antigo núbio. Muitos defendem e valorizam a cultura material presente nos museus do território sudanês, que estimula o turismo e até mesmo a identidade nacional do Sudão. Ano passado um colega que pesquisa as querelas políticas entre o Sul e o Norte sudaneses me mostrou um hino composto décadas atrás que mencionava fortemente o reino de Kush e isso é emblemático para se perceber como a antiguidade ainda permeia a memória coletiva destes países africanos. No sul do Egito as populações locais se identificam como núbias e falam o árabe egípcio e um outro idioma chamado por eles de “núbio”.
Como você conduziu a sua pesquisa, quais foram os principais desafios?
Lidar com este campo no Brasil torna-se complicado justamente pelo afastamento geográfico e temporal com os sujeitos de pesquisa. No Brasil, infelizmente a área de História Antiga viu-se e ainda se vê carente, especialmente no tema do Egito faraônico. O caso da Núbia torna-se ainda mais grave, pois pouquíssimas pessoas no Brasil conhecem o tema ou veem os territórios núbios para além da absoluta submissão ao Egito na antiguidade. Creio que os principais desafios nesse sentido sejam o acesso a bibliografias, sendo a grande maioria delas em línguas estrangeiras como o inglês e o francês, além do próprio contato com as fontes escritas do período, em hieróglifos e com traduções ora defasadas, ora ausentes.
Quais são suas principais conclusões nesse trabalho?
A pesquisa continua em andamento, até a defesa de minha dissertação, agendada para o verão de 2017. No entanto, a conclusão em torno das respostas núbias aos projetos de dominação egípcia, tão sutis e silenciosas no início de minha pesquisa, hoje está cada vez mais enfática na percepção de uma autonomia núbia dentro das possibilidades do controle faraônico. Recentemente tive acesso a mais documentos em torno de príncipes núbios educados na corte egípcia do período e percebi no registro tumular de dois deles menções de culto a deuses núbios, algo que me parece ir contra a corrente de aculturação egípcia. Nestas sutilezas acredito residir a contradição do controle egípcio, que ao mesmo tempo que estabelecia fronteiras e hierarquias entre o Egito e os estrangeiros também avançava com políticas de assimilação cultural.
Qual a importância de um congresso como o COPENE para os pesquisadores em História?
O COPENE possui o caráter de evento acadêmico e político, uma vez que se insere nas discussões em torno da valorização de pesquisadores/as negros/as e temas que envolvam a experiência africana e afrodescendente, tão invisibilizadas pelo olhar eurocêntrico da academia e da sociedade. No caso da história, cada vez mais percebemos o avanço do campo dos estudos africanos e da história das populações afro-brasileiras dentro da academia e dos livros didáticos. No entanto, os passos ainda são graduais e muito ainda precisa ser feito, aliando a inserção destes conteúdos com um olhar que se atente aos riscos da colonialidade destes saberes. Neste sentido o COPENE traz vozes diversas ao habitual acadêmico, valorizando o local de fala do/a pesquisador/a afrodescendente, bem como conteúdos e metodologias variantes e enriquecedoras à experiência acadêmica e docente.
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