Quem acompanhou a euforia da premiação do Oscar 2017 nesse final de semana notou a gafe no momento de entrega do maior – e mais esperado – prêmio cinematográfico da noite (La La Land foi anunciado equivocadamente como melhor filme no lugar de Moonlight).
Mesmo com os erros e constantes memes que circularam nas redes sociais, um filme biográfico saiu sem estatuetas, mas conseguiu conquistar seu espaço durante a cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.
Esse foi Hidden Figures (adaptado do livro homônimo de Margot Lee Shetterly) que no Brasil foi traduzido como “Estrelas Além do Tempo”. O enredo biográfico resume a história de três cientistas negras (Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson) que fizeram a diferença na agência espacial norte-americana NASA (National Aeronautics and Space Administration) durante a corrida espacial, permitindo que astronauta John Glenn fosse o primeiro americano a orbitar ao redor da Terra em 1962.
O longa metragem “Estrelas Além do Tempo” saiu sem premiação no Oscar 2017, mas recebeu três indicações como melhor filme, melhor roteiro adaptado e melhor atriz coadjuvante para Octavia Spencer (que interpreta a cientista Dorothy Vaughan, programadora que implementou o sistema de linguagem Fortran na NASA). Além disso, foi premiado em outros festivais, como de melhor elenco no SAG Awards 2017.
Apesar da premissa do filme procurar compreender a história das três cientistas, o foco da história se concentrou em Katherine Johnson (interpretada por Taraji P. Hansen), matemática responsável por calcular a trajetória de Alan Shepard (primeiro americano e segundo homem no espaço) e que revisou os cálculos realizados pelos ainda pioneiros computadores eletrônicos a pedido pessoal de John Glenn, antes de sua viagem pela órbita terrestre, devido ao seu destaque como matemática.
Das três cientistas retratadas, Katherine Johnson é a única que ainda está viva com 98 anos. A matemática surpreendeu a plateia que acompanhava o Oscar 2017 ao subir no palco para anunciar, junto com as atrizes de “Estrelas Além do Tempo”, o prêmio de melhor documentário. Sua aparição foi antecedida pelas palavras de Taraji P. Hansen:
“Nós três tivemos o privilégio de estar em um filme sobre Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson que brilhantemente fizeram a nossa nação [EUA] chegar até o espaço. Agora, por favor, senhores, deem boas vindas a uma verdadeira heroína e membro da Nasa: Katherine Johnson”. – Taraji P. Hansen durante a cerimônia do Oscar 2017.
Como o próprio nome do livro e filme em inglês diz, essas e tantas outras cientistas são figuras escondidas, ocultas pelo machismo – ainda vigente na ciência – e com agravante da opressão do racismo – também presente -, claramente evidenciado no longa com as leis segregacionistas e quadros entrelaçando cenas ficcionais e reais de luta pelos direitos civis.
Dessa vez, as lutas e resistências individuais aparecem protagonizadas nos embates da década de 60 com essas três cientistas, exaltando a necessidade em conhecer personalidades tão fortes que fizeram a diferença e são capazes de inspirar tantas outras pessoas. (Para ler uma crítica sobre o filme com representação, confira a opinião de Anne Caroline Quiangala no texto “Estrelas Além do Tempo: o filme que Hollywood nos devia!”).
O filme trata os pontos de segregação com relativo humor desde o começo da película, quando mostra a genialidade da Katherine criança até o encontro das três cientistas na estrada, com carro quebrado, sendo abordadas por um policial branco. Ou ainda no ritmo da música e feições da atriz ao demonstrar as jornadas diárias de Katherine Johnson para usar o banheiro feminino para negras, separado em outro prédio distante.
Mas mesmo com essas pitadas de humor, a todo momento o racismo é escancarado como construção social, visível em um dos exemplos no diálogo entre a supervisora branca Vivian Mitchell (personagem fictícia interpretada por Kirsten Dunst) com Dorothy Vaughan (interpretada por Octavia Spencer), em que a programadora diz que acredita que a colega crê não ser racista, mesmo sendo em cada atitude.
Confira aqui o trailer:
Figuras escondidas da NASA
Não é de hoje que vemos as mulheres sendo deixadas em segundo plano nas grandes descobertas e inovações do mundo. Já discutimos aqui como Cecilia Payne sofreu no início do século XX por querer seguir seu sonho em ser astrônoma, sendo de início alocada apenas como “computador humano” na Universidade de Harvard, encarregada por fazer os cálculos que hoje nossas máquinas fazem.
Anos depois, entre 1935 a 1970, a NACA (National Advisory Committee for Aeronautics) precursora da NASA também passou a empregar mulheres como os “computadores humanos”. Antes eram apenas mulheres brancas, mas a partir de 1940 passaram a contratar mulheres negras que trabalhavam na ala segregada “West Area Computers”. Esse é o pano de fundo da trama “Estrelas Além do Tempo”, apresentando, de forma leve e com empoderamento, a luta contra a opressão que cientistas negras sofreram, mesmo sendo peças chave para grandes conquistas da Agência.
Essas batalhas contra a segregação e o machismo são vistas no próprio trailer com a indignação de Mary Jackson (interpretada pela cantora e atriz Janelle Monáe), que na sua busca por ser engenheira da NASA, ressalta como “mudam a linha de chegada” mais uma vez, exigindo que para se candidatar ao cargo, a pessoa deveria ser graduada pela Universidade de Virgínia, que na época só aceitava alunos brancos.
Nesse ponto, começa a nova peleja nos tribunais de Jackson para conseguir ingressar na faculdade e atingir seu sonho (com falas empoderadas que me fez querer ler o livro para conferir como foi essa luta): “Planejo ser uma engenheira na NASA. Mas não conseguirei sem estudar naquela faculdade de brancos. E não posso mudar a cor da minha pele. Então, não tenho escolha, exceto ser a primeira [negra a estudar lá]”.
Histórias importantess como essas nos fazem querer conhecer melhor essas mulheres negras e cientistas que fizeram a diferença na NASA. Convido para passarmos rapidamente por suas histórias ao som de Runnin’, de Pharrell Williams, que, além de ser um dos produtores, colaborou na composição da trilha do longa metragem, em parceria com Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch.
Katherine Johnson
O site oficial da NASA denomina Katherine Johnson como “A menina que amava contar”, sendo que ao receber do presidente Barack Obama a National Medal of Freedom em 2015, é relatado que a matemática teria dito (em tradução livre): “Eu contava tudo. Eu contava os passos na estrada, os passos até a igreja, o número de pratos e talheres que eu lavava… Tudo o que poderia ser contado, eu contava.”.
Contas essas que fizeram a diferença e ganharam os holofotes de Hollywood. Nascida em 1918, na cidade de White Sulphur Springs (Virginia Ocidental), a cientista se destacou desde cedo com altas notas no colégio que a levou, com apenas 13 anos, a cursar o ensino médio no mesmo campus da West Virginia State College, onde se graduou em matemática com 18 anos.
Johnson passou a dar aulas, mas teve que parar de trabalhar para cuidar de suas três filhas. Quando elas ficaram um pouco mais velhas, ela retornou para as salas de aula.
Sua carreira na NASA só começou em 1952, sob orientações de Dorothy Vaughan. Com as pressões pelo lançamento do satélite soviético Sputnik, a Força Tarefa Espacial solicita reforços, onde entra em cena a nossa matemática com cálculos precisos.
Katherine Johnson foi responsável pela análise e cálculo da trajetória do primeiro americano no espaço e também por revisar os cálculos dos computadores eletrônicos que permitiriam a volta de John Glenn, que orbitou ao redor da Terra. Além disso, também contribuiu para o sucesso da chegada do homem à Lua.
Johnson se aposentou da NASA em 1986 e ainda vive.
Dorothy Vaughan
Dorothy Vaughan nasceu em 1910 em Kansas (Missouri) e também era matemática, formada pela Universidade de Wilberforce aos 19 anos. Em caminho similar ao de Katherine Johnson, começou sua carreira como professora até embarcar no laboratório da NASA em 1943, onde com muita luta se tornou a primeira supervisora negra.
Em momento de Segunda Guerra, Vaughan chegou até Langley Memorial Aeronautical Laboratory (o mais antigo centro de pesquisa de campo da NASA, localizado em Hampton, Virginia) crendo ser apenas um trabalho temporário. No entanto, mais tarde passou a supervisionar de modo informal a ala de “computadores de cor” (colored computer), segregadas das mulheres brancas, assim como tantas outras salas e objetos da época.
Ao perceber que a “West Area Computers”, onde ficavam as mulheres negras, seria a primeira ala a ser cortada com a introdução das máquinas da IBM, Vaughan decidiu aprender a programar, sendo ela quem se especializou e implementou na NASA o sistema de linguagem Fortran. Ela também contribuiu no projeto do foguete Scout (Solid Controlled Orbital Utility Test), que lançaria pequenos satélites na órbita.
A programadora se aposentou da NASA em 1971 e faleceu em 10 de novembro de 2008.
Mary Jackson
Mary Jackson nasceu em 1921 em Hampton (Virgínia) e se tornou a primeira engenheira negra da NASA. Antes desse feito, a engenheira espacial conquistou o diploma duplo em matemática e ciências físicas em 1942, repetindo a história de tantas outras que tinham como destino as salas de aula como emprego.
Sua entrada na NASA não foi de imediato. Ela trabalhou antes disso como recepcionista no King Street USO Club, como “guarda-livros” no Departamento de Saúde do Instituto Hampton e ainda como dona-de-casa com a chegada de seu filho.
Antes de trabalhar como “computador” sob supervisão de Dorothy Vaughan no Langley Memorial Aeronautical Laboratory em 1951, ela ainda foi secretária do exército em Fort Monroe.
Dois anos após sua contratação na NASA, ela passou a trabalhar com o engenheiro Kazimierz Czarnecki no projeto de Túnel de Pressão Supersônico, quem a incentivou a se tornar engenheira no programa.
Em diálogo recortado do filme, Czarnecki questiona para Jackson se ela fosse um homem branco, se ela desejaria ser um engenheiro da NASA, a cientista respondeu que se ela fosse um homem branco ela não desejaria ser um engenheiro, ela já seria um engenheiro da NASA.
Os empecilhos para alavancar sua carreira eram constantes. Para se candidatar a promoção, apesar de seus diplomas e experiência, ela deveria ter uma pós-graduação pela Universidade de Virgínia, que não aceitava alunos negros.
Após vencer a segregação nos tribunais e ganhar o direito ao estudo, em 1958 Mary Jackson se torna a primeira engenheira negra da NASA. Em biografia divulgada pela agência, a engenheira se decepcionou ao perceber que o passar dos anos diminuiria suas promoções, mesmo com uma carreira produtiva.
A partir daí, ela abandonou o cargo como engenheira para se tornar Gerente Federal do Programa de Mulheres de Langley, onde trabalhou para ajudar as funcionárias das novas gerações a conseguirem mais oportunidades.
Mary Jackson se aposentou da NASA em 1985 e faleceu em 11 de fevereiro de 2005.
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