O Leitor (ou originalmente Der Vorleser) é um romance alemão escrito pelo professor de direito e juiz Bernhard Schlink e que em 2008 teve uma adaptação para os cinemas com direção de Stephen Daldry, totalizando cinco indicações ao Oscar (Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia e Melhor Atriz), entre outros prêmios e indicações.
O drama se desenrola na década de 1960 e aborda a problemática do Holocausto, colocando em confronto a geração do Nacional-Socialismo de Hitler (ou Tätergeneration) e a geração do pós-segunda grande guerra os Nachgeborenen.
O autor sabe de antemão que está a tratar um tema controverso e procura fazê-lo de uma forma sútil, forçando uma reflexão diferente sobre o Holocausto através da relação íntima da personagem Hanna Schmitz (interpretada nos cinemas por Kate Winslet, que ganhou o Oscar de 2009 por sua atuação), uma cobradora de trem com 36 anos de idade, e Michael Berg, um jovem estudante de 15 anos, interpretado quando jovem por David Kross e adulto por Ralph Fiennes.
O enredo
No decorrer da história, Hanna Schmitz é acusada de ter deixado que um grupo de judias morressem queimadas após ficarem presas durante um incêndio numa igreja. Na época, Schmitz era uma das guardas da SS (abreviação de Schutzstaffel), uma organização paramilitar ligada ao partido nazista e responsável pelo campo de concentração, sendo portanto acusada de não ter destrancado as portas da igreja, causando a morte do grupo. Com o contexto, desenvolve-se também uma tensão constante entre as duas gerações, resultante da dificuldade dos mais jovens em compreenderem determinados comportamentos dos seus ascendentes, como o Holocausto.
É nesse quadro que emergem os sentimentos mais puros como o amor que fazem acreditar na esperança de um futuro melhor, em oposição aos sentimentos de julgamento, preconceito e condenação que penalizam as ações do passado, talvez como forma de prever comportamentos futuros.
Através da relação entre Hanna e Michael, o autor explora formas de se lidar com o passado obscuro da história nacional alemã, sendo esta abordagem denominada em alemão de Vergangenheitsbewältigung, que em tradução livre para o português pode ser entendido como “reconciliação com o passado negativo”. O autor também procura uma explicação para a forma como as gerações atuais lidam com o acontecimento, dado que a memória e o sentimento de culpa começam a se desvanecer com o desaparecimento físico das testemunhas.
O romance vem sendo discutido nos meios de comunicação social e estudado nos meios acadêmicos, como também fizemos na Universidade de Aveiro (onde pesquiso), especialmente pela sua importância histórica e intemporal. No entanto, vale ressaltar que a obra é muito criticada porque é vista por muitos como uma tentativa de justificar os culpados do Holocausto. Por exemplo, Jeremy Adler condena o livro ao afirmar que é «A arte de gerar compaixão por assassinos» (Ramalheira, 2015). Com efeito, Bernhard Schlink é acusado de criar um enredo de forma a fazer com que o público sinta, de certa maneira, empatia pela personagem Hanna, que foi uma guarda da SS num campo de concentração nazi.
Através de Michael, o autor transforma a geração seguinte em vítimas das ações da geração anterior, como que pedindo a absolvição de ambas. Paradoxalmente, o romance retrata um passado trágico da história alemã (que, infelizmente, não se pode mudar) e a geração de Michael, que vivencia a perseguição e sofre com os resquícios do Holocausto, muito embora não tenha tido intervenção ou culpa.
Assim, a leitura do livro suscita diversas dilemas importantes para o qualquer reflexão sobre o tema. Por exemplo, é preferível preservar a memória ou optar pelo esquecimento? Como usar o passado para corrigir problemas futuros, bem como quais medidas tomar para evitar repetições?
O Leitor de Bernhard Schlink ganha atualidade, especialmente se observarmos atentamente os sinais da crise dos refugiados no Mediterrâneo e a crescente radicalização política em diversos países, como as recentes manifestações da extrema-direita em pró do nazismo em Charlottesville, na Virgínia (EUA), podendo concluir que fenômenos semelhantes podem estar iminentes (Ramalheira, 2015).
Nas entrelinhas da trama
N´O Leitor, Bernhard Schlink coloca em confronto as gerações da guerra e do pós-guerra, através de uma relação íntima entre Michael e Hanna. Hanna tem dois segredos que ocultou de Michael: o seu passado como guarda das SS e o seu analfabetismo.
O autor parece usar o facto de Hanna ser analfabeta para justificar suas ações no passado, mostrando através de Michael que se ela soubesse ler e tivesse tido acesso aos livros, poderia, eventualmente, ter se tornado num ser humano mais sensível e consciente. Isso faria dela uma pessoa mais difícil de ser instrumentalizada pela máquina nacional-socialista de Hitler.
De resto, o pragmatismo e a tendência para executar ordens com zelo, e sem questionar, que demonstrou no julgamento em tribunal, quando confrontada com a questão: Por que cometeu os crimes? Na verdade, Hanna não havia sido instruída para pensar, apenas para executar. Em contraponto, o autor mostra nos diálogos dos estudantes de Direito com o seu professor, que o conhecimento leva a uma maior consciência social e questionamento interno do bem e do mal. Talvez não seja involuntário da parte do autor, o facto de Hanna se ter suicidado, quando, por fim, aprendeu a ler e escrever. Na realidade, talvez após esse processo, Hanna tenha, por fim, tomado consciência do mal que havia feito.
A esse respeito, a pesquisadora literária Kim Worthington refere, em artigo publicado pela Comparative Literature, que Bernhard Schlink é condenado por uns e elogiado por outros por aparentemente ter mostrado o cânone literário humanista tradicional como a educação média e, portanto, um grau de autoconsciência que a leva à culpabilidade de suas ações passadas.
A educação moral tardia de Hanna foi sugerida, pelo facto de que ela cometeu suicídio no dia anterior à sua eventual libertação da prisão e, aparentemente, procura reparar os seus erros com a sua vítima sobrevivente por meio de uma doação monetária póstuma. “A literacia literária é um dos antídotos mais eficazes contra a manipulação e o totalitarismo” (Ramalheira: 2017) porque a literacia nos permite aprender a ler nas entrelinhas e a analisar o mundo à nossa volta para que não nos deixemos levar por populismos.
Do mesmo modo, Jan Assmann e John Czaplicka concluíram em análise para a revista New German Critique que a memória coletiva cultural, com todos os seus eventos traumáticos, permite que a sociedade em questão construa o seu futuro.
O estudante de direito, com manifestos traços autobiográficos na construção do personagem, tem consciência do mal que Hanna gerou, mas como viveu uma intensa história de amor com ela, tem dificuldade em odiá-la. Por isso que a ajuda, mesmo na prisão, a continuar o seu processo de alfabetização, dado ter tido a confirmação em tribunal de que Hanna era analfabeta.
No livro, Michael se sentia realmente culpado por ter amado uma criminosa, quando finalmente se convenceu do envolvimento de Hanna no Holocausto. Esses sentimentos estão presentes ao longo do romance que revelou mais um amor impossível. Sendo ele um estudante de direito (portanto, um elemento da sociedade com influência na Justiça), seu problema de consciência se intensificou mais ainda. Assim, ele assiste ao julgamento de Hanna e tenta encontrar as justificativas para tais atos, numa derradeira tentativa de compreender o envolvimento daquela geração no Holocausto. Mesmo depois de Hanna se ter suicidado, Michael continua se sentindo inquieto e, de algum modo, a carregar a culpa da sua geração.
Dessa forma, compreende-se que a história se enquadra no processo de superação do passado, chamado em alemão de Vergangenheitsbewältigung, que é esse processo de aprendizagem com o passado. Isso porque durante a ação, vemos como Michael passa pelo processo de tentar compreender porque Hanna agiu assim. Esse é o processo pelo qual a segunda e terceira geração alemãs (Nachgeborenen) tiveram de passar ao tentar entender a causa e o envolvimento de suas famílias em crimes decorrentes da Segunda Guerra Mundial.
Do mesmo modo, podemos dizer que o autor, ao escrever o livro, também passa pelo processo, sendo que ele mesmo faz parte da segunda geração. O objetivo dos alemães da segunda e terceira geração foi encontrar uma forma de lidar com a culpa da história recente, o que inclui admitir honestamente que tal passado realmente existiu, tentando remediar tanto quanto possível os erros cometidos.
Confrontando o passado
Em síntese, da análise do livro O Leitor de Bernhard Schlink e de algumas opiniões de autores, nota-se que o Holocausto é ainda uma questão latente na sociedade alemã, com a qual as gerações seguintes estão a ser confrontadas de uma forma mais racional e menos obscura.
O tema é demasiadamente complexo, tendo na sua base um conflito político e bélico, tem implicações sociais, econômicas, culturais, entre outras. Os contributos para a sua compreensão vêm das mais diversas áreas, incluindo a literatura, como observamos aqui.
A generalidade das perguntas retóricas apresentadas pelo autor através dos monólogos interiores de Michael continua sem resposta. As mesmas refletem as perguntas de toda a sua geração e têm como objetivo levantar perplexidades.
Além disso, a resposta depende sempre da perspectiva de análise. Se por um lado, parte dos alemães parecem querer fazer esquecer o assunto e seguir em frente. Por outro lado, os judeus pretendem continuar o debate, visto que foram os que mais sofreram com o Holocausto.
Apesar das dúvidas levantadas, uma certeza emerge da leitura do livro e dos diferentes autores: A educação e a cultura levam a uma maior consciência social.
Confira a seguir o trailer da adaptação do livro para os cinemas:https://www.youtube.com/embed/I50ZKFCqr8g?showinfo=0
Nota: Gostaria de agradecer à professora doutora Ana Maria Ramalheira da Universidade de Aveiro, pelo seu contributo e orientação durante todo o processo de redação deste ensaio.
*Ana Leite, licenciada em Línguas e Estudos Editoriais pela Universidade de Aveiro. Diretora executiva da Ponteditora, editora científica para a língua portuguesa.
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Referências Bibliográficas
ASSMANN, J. & CZAPLICKA, J. Collective Memory and Cultural Identity. New German Critique, n.65, 1995, p.125-133.
RAMALHEIRA, A (2015). A iliteracia moral e política no Terceiro Reich e o trauma da memória do Holocausto na geração do pós-guerra – Der Vorleser [O Leitor] (1995) de Bernhard Schlink. Revista Forma Breve. Aveiro, n.12, p.371-388, 2015.
RAMALHEIRA, A. A literacia literária é um dos antídotos mais eficazes contra a manipulação e o totalitarismo (online), 2017.
SCHLINK, B. O Leitor, Lisboa: Edições ASA, 2009.
SOBOTTKA, E.; RIBEIRO, A.; ARENARU, B.; et.al. A modernidade como desafio teórico: ensaio sobre o pensamento social alemão. 1st ed., Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 318.
WORTHINGTON, K. (2011). Suturing the Wound: Derrida’s “On Forgiveness” and Schlink’s “The Reader”, Comparative Literature, Eugene, v.63, n.2, p.203-224, 2011. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/41238507