O Brasil não conhece o Brasil

Muito se tem falado sobre a diversidade do povo brasileiro. Ao lado disso, a variação linguística tem estado na ordem do dia na maioria dos encontros acadêmicos nas áreas de Letras, Linguística e Educação. A despeito disso, o conhecimento da cultura do sertão profundo (denominação dada pelo compositor baiano Elomar Figueira de Mello) é domínio de uns poucos, em especial no que tange à língua falada naquelas paragens.

Apaixonada por meu país e encantada com os sertões, entrei a pesquisar a fala do sertanejo, aquele que cultiva a terra para sobreviver, que cria galinhas, bodes, ovelhas, dos quais retira seu sustento, sua alimentação. Essa gente forte e desassistida nos oferece em cada encontro um novo mundo verbal, que nos leva a cogitar de onde saíram as denominações música sertaneja ou sertanejo universitário, como identificadoras de um conjunto de composições que pouco ou nada trazem da vida nos sertões.

Guimarães Rosa foi um de nossos escritores que, de fato, adentrou o sertão. Montado em seu cavalo andejou pelas terras das minas gerais e conversou com brasileiros locais com os quais foi elaborado o seu repertório sertanejo representado em seus contos e romances. Ao lado das laboriosas e insólitas construções vocabulares apuráveis nos textos rosianos, ali é possível encontrar a fala dos pequenos lavradores, também conhecidos como roceiros, caipiras etc. Essa gente, distanciada da cidade, é rica em sabedoria. Fala de sua terra e de sua gente com propriedade que cativa a todos que desse povo se aproximam, com olhos curiosos de descobrir o Brasil.

Guimarães Rosa

O autor de Grandes Sertões: Veredas comportou-se como um repórter investigativo da riqueza caipira e, como um Dalí, pintou quadros extravagantes desse sertão real visitado, talvez para de algum modo capturar leitores. Por que capturar? Pelo simples fato de, por desconhecimento, o leitor brasileiro não se interessaria por conhecer relatos de uma paisagem sempre mostrada como miserável, sofrida e afastada da cultura letrada. Logo, o incauto concluía que nada ganharia lendo coisas que falassem de sertão. No entanto, a astúcia de Rosa conseguiu com as suas estórias, revolucionar o mundo das letras envolvendo os leitores nas teias de um mundo aparentemente distante e estranho, mas que nada mais era que um tipo “cronical” de retratar o mundo dos caipiras mineiros: sua fala, sua gente, sua vida.

Daí me vem Elomar. Nos idos dos anos 80, iniciando meus estudos de violão, fui apresentada às composições elomarianas. Paixão à primeira audição! Suas músicas me levavam a Vila Lobos, a Mozart, aos menestréis, às pastorais, enfim proporcionava-me um mergulho na História. Melodias inebriantes. Letras surpreendentes. Composição magistral.

O contraponto: a plateia de Elomar é seleta, fiel e, relativamente, pequena. Seus auditórios lotados reúnem ouvintes de todas as idades, cujo gosto musical é especial e específico. Especial porque é diferente do que difundem a mídia falada e televisiva. Específico porque agrega as culturas erudita, caipira, religiosa e romântica em páginas literomusicais que envolvem músicos, cameratas, orquestras inteiras.

Assim como apresentei Guimarães Rosa como repórter, apresento Elomar como cantador-cronista das belezas do sertão profundo desbravado inclusive por recuos no tempo, que remontam às novelas de cavalaria e às cantigas.

Guimarães e Elomar são dois competentes cicerones a nos conduzir pelo interior do país e mostrar a língua portuguesa do Brasil que poucos conhecem. Uma variedade pouco visitada, a língua do sertão, quando olhada de perto, descortinada, abre um cenário maravilhoso, capaz de deslumbrar até os menos interessados nas coisas da língua e do sertão.

Na intenção de divulgar nosso idioma, sigo a explorar a produção elomariana, mormente quando vai ao encontro de falas longínquas (no espaço e no tempo) que nos apresentam personagens de rara beleza, sobretudo pela crueza (in natura) de sua apresentação (Simões, 2006). A rudeza da linguagem de algumas composições convola em grandiosidade de expressão quando apreciada nas suas qualidades plásticas e melódicas, como neste fragmento: “(…) Vai prá mais de duas lũa / Qui meu pai mandô eu i no Nazaré / Buscá u’a quarta de faria / Eu e o irmão Zé Bento vĩa andano a pé / Mãe lua magrĩa qui está no céu / Será qui cuano eu chego in mĩa terra / Aina vô encontrá o qui é meu / Será qui Deus do céu, aqui na terra / De nosso povo intonce se esqueceu/ Na cantiga morreu tudo / Qui nem percisô caxão / Meu cumpade João Barbudo / Num cumpriu obrigação / Udo ão udo ão.” (Elomar¹, 1978). Outras letras trazem um tom mavioso, romântico, como em: “Lá na casa dos Carneiros / Onde os violeiros vão  / cantar louvando você / Em cantiga de amigo / Cantando comigo / somente porque você é / Minha amiga, mulher / Lua nova do céu que já não me quer / Dezessete é minha conta / Vem amiga e conta  / uma coisa linda pra mim / Conta os fios dos teus cabelos / Sonhos e anelos/ Conta-me se o amor não tem fim / Madre amiga é ruim / Me mentiu jurando amor que não tem fim (…)” (Elomar², 1986).

A transcrição desses versos tem por meta demonstrar a produção verbal de Elomar, contida em seu Cancioneiro e, ao mesmo tempo, estimular a incursão pelos recônditos do Brasil, visitando-lhe a língua que documenta sua multifacetada cultura.

Minha crítica relativa ao desconhecimento do Brasil pelo próprio Brasil é documentada também musicalmente, por exemplo, por Aldir Blanc e Maurício Tapajós: “O Brazil não conhece o Brasil / O Brasil nunca foi ao Brazil / Tapir, jabuti, liana, alamandra, alialaúde / Piau, ururau, aqui, ataúde / Piá, carioca, porecramecrã / Jobim akarore Jobim-açu / Oh, oh, oh (…)” (“Querelas do Brasil”³, fragmento). Esses poucos versos já desafiam o ouvinte/leitor a arriscar atribuir significados a essas formas não usuais nas falas citadinas. Desbravando a língua, vai-se adentrando nossas terras brasilis e redescobrindo o Brasil.

As questões atuais sobre variação linguística articulada com inclusão deixam de fora a observação de variedades que iluminariam o olhar pelo interior do país, trazendo-se, por exemplo, os textos dos cantadores para as práticas pedagógicas. Projetos como os desenvolvidos pela pesquisadora Aira Suzana R. Martins (Colégio Pedro II) e pela doutoranda Morgana Ribeiro dos Santos (UERJ) põem em contato estudantes e literatura de cordel. Martins, que também é musicista, combina os estudos dos cordéis com composições como as do maestro e compositor brasileiro Heitor Villa Lobos. Segundo afirma Martins (2015) “graças às contribuições dos estudos sociolinguísticos, compreende-se que todos os estilos têm a sua devida importância. Desse modo, diferentes registros linguísticos deverão ser tratados na escola, considerando o papel de cada um nas diversas situações”. Santos explica que “A literatura de cordel é uma manifestação genuína da cultura popular brasileira que floresceu no Nordeste, a partir do diálogo com a cultura europeia, enraizada nas tradições orais e configurada como gênero da literatura escrita no final do Século XIX.” Dessa forma, as estudiosas vão aproximando seus pupilos à cultura do sertão e assim vão familiarizando-os com usos linguísticos até ali não conhecidos. Essas práticas também são modos de promover o respeito pelas falas interioranas, apresentando-as como marcas da verdadeira cultura sertaneja, imagens de um Brasil pouco conhecido pelos brasileiros.

Notas

¹ Fragmento de “A Pergunta” In: O Tropeiro Gonsalin. faixa 3 do LP Na Quadrada das Águas Perdidas (1978) – Gravado nos estúdios do Seminário Livre de Música da Universidade Federal da Bahia, em dezembro de 1978. Fonte: http://www.elomar.com.br/discografia/naquadrada.html Acesso em 14.Fev.2017.

² Fragmento de “Cantiga de Amigo”, faixa 5 do LP Dos Confins do Sertão (1986) – Trikont – Gravado e publicado na Alemanha Ocidental, a convite especial do governo dali (na época em que se aplicava o “Ocidental”) foi o resultado de uma apresentação em um Festival de música Ibero-Americana, do qual o autor recebeu o Primeiro Prêmio Internacional. http://www.elomar.com.br/discografia/dosconfins Acesso em 14.Fev.2017.

³ Faixa 1 da Coletânea Aldir Blanc e Maurício Tapajós (Aldir Blanc e Maurício Tapajós) • Saci • LP. 1984. http://cliquemusic.uol.com.br/discos/ver/aldir-blanc-e-mauricio-tapajos-2  Acesso em 14.Fev.2017.

*Darcilia Simões é professora associada do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), vice-presidente da Associação Internacional de Linguística do Português (AILP), coordenadora do Laboratório de Semiótica (LABSEM) e das Publicações Dialogarts. Lidera o GrPesq Semiótica, Leitura e Produção de Textos (SELEPROT)- Base CNPq. Suas pesquisas privilegiam o ensino da língua portuguesa, com foco principal na iconicidade e na linguística aplicada. Ela também é editora da revista Caderno Seminal que você pode acessar aqui. Contato: darcilia.simoes@pq.cnpq.br

**Texto revisado por Aparecida ​Cardoso.

 

Referências:

MARTINS, Aira Suzana R. “Variação linguística e práticas de leitura e escrita”. In Matraga. Rio de Janeiro, v.22, n.36, jan/jun. 2015. p. 113-124.  Acesso em 14.Fev.2017.

SANTOS, Morgana Ribeiro dos. “Perspectivas da literatura de cordel no ensino fundamental: Poesia popular nordestina nos livros didáticos”. In: Anais do XVII CONGRESO INTERNACIONAL ASOCIACIÓN DE LINGÜÍSTICA Y FILOLOGÍA DE AMÉRICA LATINA (ALFAL 2014). João Pessoa – Paraíba, Brasil. Acesso em 14.Fev.2017

SIMÕES, Darcilia, Any Cristina SALOMÃO, e Luiz. KAROL. Língua e Estilo de Elomar. (E-Book). Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006. Acesso em 14.Fev.2017

Equipe do Galoá science

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